O Farol de Lubumbashi

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Os Persas a nu


Os Persas contados noutra história

Era uma vez um puto. Quando o seu pai faleceu, já não era assim tão puto. Mesmo que o fosse, teria que demonstrar que era já um adulto e teve que assumir a direcção da rede de hipermercados, um autêntico império erigido pelo pai.

Colocavam-se duas questões na cabeça do puto que já não era assim tão puto:
"Serei aquele que herda um império económico e vive da sua gestão à sombra do pai?"
"Ou serei aquele que herda e faz juz a uma linhagem de sucesso, engrandecendo continuamente o bolo?"

O puto que já não era assim tão puto respondeu afirmativamente à segunda questão. Apostou numa rede internacional de telégrafos low-cost. Saiu-se mal. Não contava com uma coisa chamada internet.

Envergonhado, retirou-se desta batalha. Passou a viver nas sombras dos hipermercados, onde se dizia que pairava o fantasma do seu pai. Sim, e sentiu-se estúpido para sempre.

Os Persas agora a sério

A tragédia de Ésquilo conta-nos a vontade de um império, uma derrota ardilosa e a vitória de uma ideologia.

Trata-se da única peça grega que remete para eventos históricos contemporâneos de quem escreve, tendo sido composta em 472 a.C. e tendo como tema central a batalha de Salamina (480 a.C.), na qual Ésquilo participou como soldado.

Curiosamente, é contada pela facção derrotada - os persas -, aquando do regresso do rei Xerxes a Susa, capital do Império Persa. Xerxes pretendia engrandecer o seu império, como o pai o havia feito. Mais do que o engrandecimento do território, trata-se de colocar luz sobre o seu nome, de modo a sair da sombra do pai - Dario. A Hélade fazia parte desses planos.

Partindo com a maior frota que o mundo conhecido alguma vez havia visto, os persas viram-se encurralados no Helesponto e foram aí derrotados por uma força grega infinitamente menor. Porém, mais do que o heroísmo à laia de David contra Golias, trata-se sobretudo de uma vitória da grandeza. Os gregos, poucos, transportavam a superioridade do seu sistema político - a democracia - contra os persas, muitos, que vinham munidos com a inferior autocracia. A vitória residiu num ardil, é verdade, mas foi acima de tudo a vitória do espírito superior, escrito pelo grego Ésquilo.

Expressões que abichanam um leitor em Os Persas

Coro
"[Xerxes] confia nos sólidos e duros comandantes das suas forças terrestres e navais, ele que é filho da chuva de ouro, um homem igual aos deuses."
p. 21 vv. 76-80

Corifeu
"Vem a chegar um homem cujo modo de correr denuncia a sua origem persa. Boa ou má, é, portanto, segura a notícia que nos traz."
p. 29 vv. 246-247

Dario
"Mas não é fácil sair dos infernos: os deuses subterrâneos sabem melhor tomar do que largar."
p. 46 vv. 687-688

Os Persas vão bem com

Sopa
Caldo de arroz, sem sal

Prato Principal
4 Big Macs com caril, para esquecer

Sobremesa
Qualquer cena com bué de chantilly, para esquecer

Bebida
Absinto, para olvidar

Música de acompanhamento


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

A Metamorfose a nu


A Metamorfose contada noutra história

Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Pedro C. viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso humano. Estava deitado de costas, umas costas tão duras como havia sido a sua cabeça até à noite anterior, e, ao levantar um pouco a sua cabeça, viu pessoas: não estavam diante dele, mas no seu pensamento. Aonde estariam os números, a sua obsessão pública? Tentou picar, esfregar e lavar os olhos, mas as pessoas não o abandonavam. Pior: sentia compaixão por elas; não sabia como, mas sentia-as sofrer e sabia que queria actuar para as salvar.
O que diria a sua família? As pessoas que o abraçaram e que contavam com os seus números, como lhes iria dizer que tinha urgência ajudar estranhos? Será que reparariam que se havia tornado num humano? Teria que romper com a família: com a mãe Ângela, com o pai Dias e com o irmão Paulo. Mas como? Entretanto, esperaria no quarto. Tomaria o pequeno-almoço aí e faltaria ao trabalho. Talvez amanhã isto passasse.

A Metamorfose agora a sério

Regressei à Metamorfose dezasseis anos depois. Em 1999, quando o li pela primeira vez era um leitor imaturo. Não conhecia autores, lia anarquicamente, era influenciado por leituras alheias, normalmente por miúdas que me interessavam e que me levavam a ler Paulo Coelho ou Richard Bach, os quais entremeava com Saramago, Orwell e os reis do thriller, Irving Wallace e Frederick Forsyth. Quer isto dizer que Kafka entrou na minha lista ainda na minha adolescência literária; quando achamos que temos opiniões fortes e os livros vêm que cumprir um desígnio de complemento ao nosso ego. E neste contexto, consegui colocar o Alquimista por defronte da Metamorfose. Um homem que acorda e se vê metamorfoseado numa barata - que ridículo!

A felicidade de abandonar a adolescência é não ter medo de crescer e dizer, acima de tudo, "que estupidez do caralho!". Agora, com 36 anos, dei uma segunda oportunidade ao livro, o que não acontecerá com o Alquimista. Normalmente sucede com os livros que guardo que eles vão ficando, nunca abandonam totalmente. Não sou de sublinhar passagens, escrever nas margens, porque escolhi que quero que os livros vivam longe do meu cérebro. Consigo lembrar-me de passagens de livros de que não gostei e o contrário é bem mais frequente. Vivo disso.

A Metamorfose transporta aquele segredo que só os grandes escritores têm: as entrelinhas. Não se trata de mensagens subliminares, apenas do desenho do livro, como aquelas imagens de pontinhos que temos que ligar para encontrar a forma final. E estou nessa fase: de ligar os pontinhos. Passando a barreira pueril da transformação do homem num animal, a obra de Kafka como que aponta para o determinismo humano: para o destino do homem enquanto elemento social. Gregor Samsa, a barata tonta, era a estrutura da família, o pilar que não podia falhar, a bem da não implosão daquela casa. Metamorfoseado, vê-se incapaz de desempenhar o seu papel, e essa é a principal preocupação, daí a questão do porquê estar ausente em todo o livro. Por que razão Gregor Samsa acordou barata? Não interessa. É importante, sim, que ser barata é uma chatice porque impede voltar ao trabalho, obriga o pai a trabalhar e, sobretudo, a irmã de perseguir os seus sonhos.

Expressões que abichanam um leitor em A Metamorfose

"Depois, deixou-se cair contra as costas de uma cadeira que se encontrava próxima, agarrando com o auxílio das suas pequenas patas. Mas, ao mesmo tempo, tinha readquirido o domínio de si próprio, calando-se, porque nessa altura escutava o que o seu chefe tinha a dizer.
- Os senhores porventura perceberam alguma palavra? - perguntava este dirigindo-se aos pais -, ele não estará a tentar fazer troça de nós?"
p. 22

A Metamorfose vai bem com

Sopa 
Sopa de bastões de Nero

Prato principal
Um secador recheado com cotonetes no forno

Sobremesa
Maçã assada no lombo

Bebida
Urina destilada em alecrim

Música de acompanhamento